SABOTAGEM
museu da cidade de são paulo | casa da imagem 2014
letícia ramos | marcia xavier
texto: arnaldo antunes

"A partir desse quebra-cabeça de fatos e fotos, Marcia e Leticia foram concebendo este ambiente-instalação, onde seis retroprojetores; um backlight composto com a luz de uma das janelas; um olho mágico; sons pré-gravados e microfones que captam ao vivo os passos de quem entra; um filme produzido e projetado em 16 mm, simulando fatos que apenas se intuem; e uma sequência de fotos estroboscópicas de um arquivo caindo no espaço compõem a densa e tensa atmosfera de sabotagem."

(texto na íntegra ao final da página)








enigma
instalação
4 retroprojetores, cinzeiro e chave
200 x 200 x 200cm


suspeitos
reprodução de fotografia do acervo da casa da imagem em duratrans e backlight
100 x 100 cm



provas
reprodução em cromo 4x5 de fotografia do acervo da casa da imagem visto por uma lente de 10cm, desenho de ponta seca e luz















S A B O T A G E M
por Arnaldo Antunes

Quando Leticia Ramos e Marcia Xavier escolheram, no vasto acervo da Casa da Imagem, as fotos de destruição de uma sala de arquivos como ponto de partida para sua exposição conjunta naquela instituição, não sabiam bem do que se tratava.
Sabotagem? Vandalismo? Queima de arquivo?

As fotos, em preto e branco, traziam marcas da época e das circunstâncias em que foram tiradas. Mais do que um enfoque jornalístico, pareciam registros da ocorrência feitos pela polícia. Os grandes arquivos de metal com documentos de papel envelhecido sugeriam um cenário de meados do século passado.

Conseguiram localizar, num dos processos espalhados pelo chão do local depredado, o ano de 1944. Nas fichas da própria Casa da Imagem viram que a ocorrência se dera na sede da Prefeitura de São Paulo.

Pesquisando jornais da época (entre 1944 e 1950), encontraram, em O Estado de S. Paulo de 02/08/1947, a referência precisa na manchete: “Incêndios, apedrejamentos, correrias, tiroteios nas ruas e praças de São Paulo”, com o subtítulo: “Apedrejada e depois assaltada a sede da prefeitura na Rua Líbero Badaró”.

Viram então que se tratava de um desdobramento de manifestações de protesto contra o aumento de tarifas dos transportes coletivos naquele período. A assombrosa coincidência com o que ocorreu em São Paulo em junho 2013 foi mais um dos laços de uma rede de investigações documentais e instigações artísticas, que as foi motivando.

A partir desse quebra-cabeça de fatos e fotos, Marcia e Leticia foram concebendo este ambiente-instalação, onde seis retroprojetores; um backlight composto com a luz de uma das janelas; um olho mágico; sons pré-gravados e microfones que captam ao vivo os passos de quem entra; um filme produzido e projetado em 16 mm, simulando fatos que apenas se intuem; e uma sequência de fotos estroboscópicas de um arquivo caindo no espaço compõem a densa e tensa atmosfera de sabotagem.

O motor dessa criação não é a crônica, a fidelidade aos fatos ou a crítica social daquele contexto, mas a transmutação de vestígios e indícios em experiência sensível, no tempo presente.

Não há uma narrativa clara, mas a apropriação de um universo de referências para criar um ambiente, a partir do qual eclodem sensações de deslumbre e medo, beleza e ameaça, vertigem e violência, ordem e desordem. Rastos, sinais, acenos de fatos ocultos. Como um filme noir sem enredo.

Diferentemente do “seja marginal/seja herói” de Hélio Oiticica, a apropriação aqui do universo criminal (ou da ruptura das normas sociais) não surge impregnada de um viés ideológico. Parece apenas uma inspiração.

A relação se faz mais por uma associação metonímica, em que as fotos não apenas passam a fazer parte da instalação (alteradas por projeções, distorções e aparelhos ópticos), mas também servem de impulso para a constituição de sua atmosfera. Manchas de caos no tecido da ordem social, motivando a alteração de nossas estruturas cognitivas preestabelecidas.

Em vez de uma mensagem, um clima. Em vez de uma narrativa, uma experiência sensorial – que envolve o visitante em som, luz, imagem, tato. Sabotagem dos sentidos.

O fato desse ambiente ser instaurado justamente numa instituição cuja finalidade é manter um acervo organizado de imagens antigas (memória materializada) estabelece um paradoxo que subverte nossa percepção do real.
Essa subversão evoca algo de sublime, ao nos jogar na vertigem de uma desordem atávica, instaurada num espaço de ordem onde estava arquivada sua fagulha.
Mark