o corpo dentro do corpo dentro do corpo


galeria_111 | lisboa_2018


Monocromo I
fotograma em papel fibra Ilford 30,5 x 24cm



Monocromo II
fotograma em papel fibra Ilford 187,5 x 126,5cm



Monocromo III
fotograma papel Ilford fibra 125,5 x 195,5 cm 




 




Monocromo IX
papel Ilford multigrade e fibra brilho
30,5 x 24cm



Monocromo XIV
fotograma papel Ilford fibra 39 x 48cm



Monocromo VIII
fotograma papel fibra 120 x 90,5cm

Monocromo XVII
fotograma papel fibra 124 x 113cm



Monocromo XVII
fotograma papel fibra 123 x 98cm





Monocromo XI
fotograma papel fibra 30,5 x 24cm

Monocromo XII
fotograma papel fibra 30,5 x 24cm

Monocromo XIII
fotograma papel fibra 30,5 x 24cm



Monocromo IV
fotograma papel fibra 200 x 127 cm 

Monocromo V
fotograma papel fibra 190 x 127cm



O CORPO DENTRO DO CORPO DENTRO DO CORPO 



Como escrever um texto crítico que afete o corpo de quem escreve e de quem lê? Um texto crítico que não apenas atice nosso intelecto e nossas ideias, mas que envolva os sentidos? Um texto crítico que contribua para o processo de descondicionamento do pensar e do sentir tal como uma obra de arte? Que nos conecte ao nosso corpo seja ele como for? Porque sinto que há uma urgência por este tipo de escrita que reverbere nos corpos, já que o poder busca arrefecer e controlar nossa pulsão de vida e a libido, que por sua vez estão conectadas com a criação, a potência e a transformação. É urgente novos vocabulários e novas posturas diante da vida e da arte num mundo em transição vertiginosa. Neste sentido, considero que torna-se premente a revisão de parâmetros de produção de conhecimento, de cânones, de modelos, de lugares de fala e de ancestralidades.  

Mas, o que é escrever um texto crítico que afete o corpo feminino de quem escreve e de quem lê, mesmo o destinatário não sendo uma mulher trans ou no stricto senso? Quem escreve estas linhas é uma mulher que está escrevendo sobre outra mulher para uma audiência múltipla, mas que está em busca de conectar-se cada vez mais com sua corporeidade e a dos outros como uma tomada de posição política diante dos novos tempos. O mundo ocidental, ancorado no pensamento europeu, legou-nos a suspeita de tudo o que não vem do intelecto e do racional. Neste processo, tentou aniquilar formas de saber antiquíssimos como as das mulheres, consideradas bruxas ou o próprio diabo, as dos povos indígenas (povos inferiores e primitivos) e as dos negros (uma raça sem racionalidade e talhada para o trabalho braçal).

Escrever um texto crítico que atravesse o corpo das pessoas que o leem da mesma forma que a obra da artista o fez com o corpo da mulher que o escreve talvez passe por levar tudo isso em consideração. Pode ainda passar pelo acolhimento desta escrita confessional e passional, pela entrega à intuição e não apenas à erudição, pelo engajamento com aquilo que nos foi, como mulheres, privado por séculos:  alegria, cumplicidade, leveza e prazer. Não sei se este escrito terá este êxito, mas compraz-me a tentativa.

O corpo dentro do corpo dentro do corpo abarca uma longa e prolífica conversa de Márcia Xavier com a história da fotografia, com a potência da presença mínima dos corpos, com os rituais para fazer suportável a existência humana (e mais especificamente a das mulheres) e com a artista Lourdes Castro. Como é sabido pelos os que acompanham a sua trajetória artística, Márcia explora há mais de duas décadas as possibilidades da imagem fotográfica justamente numa época de explosão e vulgarização da fotografia. Em seus experimentos recentes, ela volta-se para o fotograma, uma antiga técnica que prescinde da máquina para gerar imagens. A luz incide sobre os corpos e objetos apoiados sobre o papel fotográfico, fabricando silhuetas. Quanto maior a densidade do corpo e o tempo de sua exposição à luz, mais nítida sua presença. As tonalidades, portanto, são frutos dos vestígios de gestos e da duração de aparições, e seu resultado aninha-se mais no campo do desenho e da gravura do que no da fotografia. Aliás, estes trabalhos contrariam alguns dos princípios clássicos desta linguagem: o da reprodutibilidade técnica da fotografia, já que os fotogramas são únicos, e o da verossimilhança, tanto exaltada desde seu advento. A maior e mais bonita traição do procedimento deste tipo de grafia pela luz é a carnalidade conferida pelas marcas e  cicatrizes do papel fotográfico, passando a ser uma espécie de pele.

Os signos que emergem dos trabalhos remetem-me a simbologias ancestrais de expansão, vida, fertilidade, fenômenos espirituais, presença do invisível e outras dimensões energéticas. Ou seja, todo um vocabulário suprimido e desacreditado pela ciência moderna e as leis que regem o mundo contemporâneo. E é justamente isso o que me atrai qual magneto. Interessa-me esta sensação de familiaridade e de pertença com estas formas que me ligam a outras mulheres e às nossas  antepassadas. Gosto de sobremaneira dessas ações intuitivas de Márcia Xavier que acabam por nos conectar com outros conhecimentos passados de geração para geração. Fui criada por uma feminista que acreditava que as mulheres deveriam lutar por seu espaço e seus direitos no mundo do trabalho. No entanto, não conversávamos sobre o patriarcado e seu impacto na obliteração de saberes construídos pelas mulheres em milênios, assim como a ressonância da cristianização em nossos corpos até os dias atuais. Não falávamos sobre isso porque ela não se dava conta deste aspecto da opressão que vivemos, outro sintoma da eficiência dos métodos patriarcais. Minha consciência sobre esta questão é recente e posterior à sua morte. Mas como disse Simone de Beauvoir em sua frase mais célebre “não se nasce mulher, torna-se mulher”, as desconstruções dos construtos sociais estão em pleno processo e não têm fórmula.

Uma das consequências das teorias críticas engendradas a partir dos movimentos contra-culturais dos negros e das mulheres a partir dos anos 1960 é explicitar as estruturas que tornam grupos subalternos e situar os agentes sociais em suas posições de poder. O impacto disso tudo no mundo da arte pode ser sentido de forma mais contundente na atualidade com a revisão de nomes negligenciados da historiografia e de lugares tidos até recentemente como periféricos que só geravam arte derivativa. Contextualizar a produção artística e situar seu autor têm gerado novas histórias da arte e uma outra compreensão da produção artística e seus lugares de enunciação. E neste sentido, acho de extrema relevância e beleza o diálogo de Márcia Xavier com Lourdes Castro. Em 2005, a artista brasileira na sua primeira exposição em Portugal tomou conhecimento da existência de Lourdes numa associação feita pela jornalista Luísa Soares de Oliveira em seu artigo sobre a mostra para o jornal O Público. O desconhecimento de Márcia sobre a trajetória de uma das mais importantes artistas portuguesas pode ser entendido como sintoma deste mesmo processo de subalternização de trajetórias de mulheres de lugares não hegemônicos, mesmo Lourdes sendo reconhecida em cenas artísticas centrais como a francesa. As pontes culturais entre Brasil e Portugal são estreitas e ainda precárias.

A comparação de universos feita há mais de uma década desencadeou o interesse e uma conversa unilateral por parte de Márcia Xavier com Lourdes Castro. Seus monocromos, aqui apresentados, dialogam com as sombras eternizadas em tecidos e outros suportes desde os anos 1960 por Lourdes. A sua presença nesta exposição explicita esta teia inter-geracional de questões e de anseios de mulheres afastadas pelo tempo e o espaço e juntadas na grande trama da arte. Gosto de pensar e de sentir que, com este texto, eu me junto a essas mulheres numa linhagem de expressões, espantos, buscas, aparições e pulsações. Eu queria poder escrever um texto que atravessasse as pessoas como as obras destas duas artistas o fazem comigo. Não sei se consegui. Espero que tenha conseguido. Prometo continuar persistindo num texto escrito com todo o meu corpo.


Cristiana Tejo

Lisboa, novembro de 2018