JOGOS EXCÊNTRICOS
galeria casa triângulo | são paulo 2000
texto: lisette lagnado


"Tirando partido da superfície reflexiva que se encontra na parte interna do cilindro, Márcia nos leva a experimentar a vertigem da multiplicação da imagem. Perde-se o sentido referencial de um centro, e a realidade passa a ser vista como e houvesse um caleidoscópio acoplado em nosso circuito retiniano."

(texto na integra ao final da página)


aparelho taco
taco de bilhar, feltro de bilhar e alumínio
70 ø cm x 120cm


aparelho bilhar
bolas de bilhar, triângulo e alumínio
70 ø cm x 120cm


aparelho escada caracol
imagem em duratrans, alumínio e backlight
70 ø cm x 120cm


aparelho escada caracol (detalhe)
imagem em duratrans, alumínio e backlight
70 ø cm x 120cm


escada fotomontagem
fotografia em papel gelatina e prata e moldura em alumínio
108 x 98 x 5 cm




Fotografia como meio: os aparelhos reflexivos de Márcia Xavier

Por Lisette Lagnado
Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros.
Jorge Luis Borges, “O jardim de veredas que se bifurcam”

Não é tarefa fácil acompanhar a maneira como Márcia Xavier trabalha. A partir de idéias que surgem em profusão, os matérias encontram agrupamentos possíveis para logo trilhar direções paralelas - alguns investindo na prolongada busca de uma solução formal, outros dela regressando sem êxito. Terreno especulativo, no qual certas fotografias permanecem guardadas anos a fio até conquistar uma linha que determina seu destino.

A descrição desse processo criativo não reflete uma confusão de desígnios. Ao contrário. Se puder testemunhar tantas circunvoluções, é porque em cada caso impunha-se uma decisão estética. De fato, uma especificidades da fotografia consiste na sua dimensão temporal. Costuma-se explorar a imediatez de seus resultados,isto é, a rapidez de uma técnica a serviço de efeitos visuais. Um ranço de preconceito ronda esse tipo de comentário, solapando a característica mais fina do meio em questão.

Pois a fotografia não somente revolucionou nossa concepção de futuro mas conferiu uma indispensável potência à memória. Sua vocação para armazenamento, tornou-se arquivo em latência, permite que alteremos o sentido do prefixo “re”: é a renovada experiência da descoberta de um sentido subjacente quando se fala em releitura, quando o olhar revisita o passado para uma revisão. Em última instância, tendo mudado nossa atitude frente ao valor expressivo dos “retornos”, consequentemente a tradição deixa de figurar como ponto imutável. Há uma duração a ser portanto contabilizada nessa latência: colocar o autor permeável a sucessivas renúncias, diferindo o ato de concluir o trabalho para o seu conteúdo, uma vez em suspensão, possa encontrar, no tempo, a estrutura que melhor lhe convém.

Faz sentido então observar o percurso traçado por Márcia Xavier, que iniciara suas investigações com auto-retratos. Nesse gênero, o si-mesmo apresentava-se como o campo de ação mais próximo, podendo ser incansavelmente apreendido e moldado, livre do constrangimento de fatores externos como autorizações públicas e condições climáticas. Veremos em que medida esse princípio de individuação repercutiu num raciocínio marcado pelas questões do duplo e da repetição, traduzidas simultaneamente em forma de fragmento e múltiplo.
Por ora, interessa pontuar que não havia, nessa auto-peregrinação, nenhum caráter biográfico. Márcia Xavier tratava a si mesmo como objeto ou como lugar, nunca como sujeito. A imagem de um corpo desmembrado obedecia aos ditames formais absorvido ao longo da história da arte(notadamente o Cubismo e a Optical Art). Mas o que já sobressaía do processo era a vontade de “dar corpo ao corpo”, criar volumes para a representação fotográfica. “Vontade tridimensional”, formularia Waldemar Cordeiro, a referência certamente mais pulsante nesta exposição. Como em Ambigüidade (1962) ou em Luz semântica (1966), para citar apenas dois exemplos, os elementos imprescindíveis de Márcia Xavier as superfícies espelhadas, os vidros corrugados, prismas e luz.

Desde sua instalação que colocava em movimento giratório a fotografia de uma criança engatinhando sobre um piso geometricamente quadriculado, Márcia vem procurando expressar o problema da passagem sem contudo abdicar da possibilidade de outorgar, mediante a construção de objetos, uma concretude ao fenômeno do deslocamento da imagem. A partir deste trabalho, suas investigações deixaram de ser puramente fotográficas e ocupam o espaço ambiente. A escala foi transferida do corpo para a arquitetura, absolvida como medida necessária na dialética entre si- mesmo e o mundo externo.

Caberia portanto compreender seus objetivos na esteira aberta pelos “Bólides” de Hélio Oiticica. Há, de fato, uma nítida analogia sensorial entre o Bólide Caixa 22, caixa d’água de concreto contendo o poema “mergulho do corpo” (1967) e os atuais Aparelhos de Márcia Xavier, constituídos de tonéis metálicos revestidos de espelho- alumínio. Ambos convidam à sensação virtual de olhar dentro de um abismo. Tirando partido da superfície reflexiva que se encontra na parte interna do cilindro, Márcia nos leva a experimentar a vertigem da multiplicação da imagem. Perde-se o sentido referencial de um centro, e a realidade passa a ser vista como e houvesse um caleidoscópio acoplado em nosso circuito retiniano.

Por fim , a escolha do vocabulário não poderia ser mais transparente, repartindo-se em duas famílias de trabalho : as escadas e os jogos. Há um fascínio inelutável pelas deformações. Este dados introduz variáveis na regularidade da sequência dos degraus, formando eixos que subvertem o sentido habitual de subida e descida da escada. As combinações cambiantes do caleidoscópio podem também ser encontradas na essência dos jogos. Seja sinuca, seja xadrez, cor e estrutura se furtam à tentativa de definição, fazendo com que o objeto ganhe sua força dinâmica conforme nossa sempre mutante posição face a ele. Curioso observar que o interesse de Márcia Xavier fixou-se em jogos de precisão, cuja movimentação depende de uma parceria. Embora regidos por um sistema de regras e cálculos, envolvem uma “percepção abstrata do mundo”, a indeterminação de lances se bifurcam.