XI bienal de la habana | havana, cuba 1996
texto: alberto tassinari
"Sem a leve flexão dos joelhos e conseqüente desalinhamento dos ombros não haveria boa parte da arte da Grécia clássica e tudo mais que desencadeou. E assim fico imaginando de que pedaço de escultura helenista vieram esses joelhos tão serenos e delineados. Mas aqui paro. É apenas uma impressão. Vieram de qualquer parte, pois são as “radiografias” que recuperam para eles o aspecto clássico. Mais ainda, o clássico aí se renova por uma colagem ou montagem em sequência que forma um híbrido inesperado de escultura e cinema. Ainda que a fotografia se aparente mais à pintura, aqui o dialogo é com a escultura. Não bastassem os contrapostos ou os fotogramas de fragmentos deles, as obras são também algo escultóricas pela disposição espacial. As pernas parecem prosseguir aquém e além da transparência dos filmes. Esperamos pelo volume delas, talvez por um holograma."
(texto na íntegra ao final da página)
articulações
9 impressões adesivadas em acrílico suspensas por nylon
107 x 86 cm
coluna infinita
xerox adesiva aplicada em policarbonato e estrutura em alumínio
179 x 25 x6 cm
"ARTICULAÇÕES"
Por Alberto Tassinari
Não sei se a palavra “articulação” tem a mesma raiz da palavra “arte”.Gostaria de pensar que sim . Afinal, a tradição da arte ocidental deve muito ao dia em que os gregos decidiram flexionar as partes do corpo humano. A ortopedia então - e espero não estar cometendo grave erro historiográfico – não era muito desenvolvida. A não ser, por licença poética, que consideramos o fascínio do mundo antigo pelo movimento e pela ação humana como parte da pré-história da boa postura. Radiologistas,os gregos com certeza não eram. E é a algo como uma mistura do contraposto com radiografias que uma visão da obras de Marcia Xavier pode nos levar.
Invenção hoje banal e, depois da arte moderna, inatual, o contraposto foi tão importante para a arte naturalista quanto a colagem para a escultura do século XX. Sem a leve flexão dos joelhos e conseqüente desalinhamento dos ombros não haveria boa parte da arte da Grécia clássica e tudo mais que desencadeou. E assim fico imaginando de que pedaço de escultura helenista vieram esses joelhos tão serenos e delineados. Mas aqui paro. É apenas uma impressão. Vieram de qualquer parte, pois são as “radiografias” que recuperam para eles o aspecto clássico. Mais ainda, o clássico aí se renova por uma colagem ou montagem em sequência que forma um híbrido inesperado de escultura e cinema.
Ainda que a fotografia se aparente mais à pintura, aqui o dialogo é com a escultura. Não bastassem os contrapostos ou os fotogramas de fragmentos deles, as obras são também algo escultóricas pela disposição espacial. As pernas parecem prosseguir aquém e além da transparência dos filmes. Esperamos pelo volume delas, talvez por um holograma. A luz, entretanto, vem interromper parte de nossas expectativas. Se é a luz, por suas voltas, que forma um volume, aqui seu caminho é reto. A promessa de uma escultura se transforma num duplo da câmera fotográfica. As imagens sucessivas vão perdendo o foco e o embaralhamento delas deixa entrever um miolo mais claro como se fosse a abertura do diafragma da máquina fotográfica. A foto da figura ainda não estaria pronta, mas sendo estudada, enquadrada, focada.
O que as sobreposições de Man Ray em muitas de suas fotografias nos mostram surgem assim nas obras de Marcia Xavier mais móveis, mesmo volúveis. Que ela deva parte de sua estética ao artista americano, parece-me inegável. Em Man Ray, porém, tudo se passa num único espaço de manobra. Suas sobreposições – e as adições e subtrações que acarretam – não se modificam conforme os movimentos do corpo e do olhar do espectador.
A sobreposição de imagens e a transfiguração das coisa numa foto de Man Ray se dão pelo mesmo golpe. Já nas obras de Márcia Xavier, as mudanças de aspecto vêm da ação do espectador tentando manipular com o olhar a peculiar imitação da câmera fotográfica que nos oferece. Vemos nitidamente o joelho, logo se perde e passamos a ver silhuetas com um quê matissiano. Os joelhos se transformam em torsos, mas, como o olhar não dura muito em cada imagem, o torso se transmuda agora em uma espécie de chama. São transfigurações, assim, distintas das do surrealismo. Daí, espero, que me referindo ao cinema encontre agora melhor justificativa. Ao cinema, mas também ao filme, pois entre a pele das figuras e as películas se dá uma troca de características. As pernas se tomam leves, algo intocáveis e os filmes corpóreos, sujeitos inclusive aos movimentos do ar ambiente. Numa época em que a beleza e a boa forma física tornou-se uma obsessão, as obras de Márcia Xavier apostam num sentido inverso.
O atual culto do corpo com sua indústria crescente e cujo interesse principal é a preservação do próprio negócio nada tem a receber destas obras. Por elas, sem dúvida, passa uma brisa de beleza, mas de uma beleza sem musculação e todas as manias atuais de conseguir a vida eterna num mundo que será sempre
terreno. Para retomar ao início, essas fotos “radiografias” talvez sejam de tíbias várias, talvez sejam de fumantes, de reumáticos. Nada disso certamente importa. São feitas para um movimento e uma beleza do olhar e não para alguém a ser olhado.
Daí que sejam também meio que resfriadas pela artista. Há mesmo um pouco de luto no que ao mesmo tempo nessas obras não deixa de ser atraente. Num mundo em que a ciência – e muitas pseudociências, como a indústria da boa forma – mandam e demandam em nossas vidas, a arte não deixa de ser um bom remédio. Ainda que apenas para os olhos.